Câmera corporal de PM não registra o momento de morte na Favela Kelson's; relatório indica tentativa de apagar imagens
13/05/2024
(Foto: Reprodução) Investigação tenta descobrir por que vídeos e áudios da morte de Alex Souza Araújo dos Santos, de 19 anos, não foram registrados. Câmera corporal de PM não registra o momento de morte na Favela Kelson´s; relatório indica tentativa de apagar imagens
A investigação da morte de um jovem na Favela Kelson's, no Complexo da Maré, em março do ano passado tenta descobrir por que a câmera do PM apontado como o autor do disparo não tem qualquer imagem, nem áudio, no momento exato da morte.
Um relatório técnico da empresa que fornece os equipamentos aponta duas suspeitas baseadas em comandos registrados pelo sistema: que alguém tentou apagar as imagens e também desligar o aparelho, momentos antes e depois do tiro.
Em umma gravação feita por moradores minutos após a morte de Alex Souza Araújo dos Santos, de 19 anos, é possível ver que o cabo Douglas de Oliveira Soares estava com a câmera no colete.
Também segundo relatório técnico que consta no inquérito da Polícia Civil, o equipamento estava com bateria e em plenas condições de funcionamento. Conforme resolução da PM, o local em que ela estava, neste momento, é o correto. Estava visível, sem nada para obstruir a captação de imagens.
A maior dúvida das investigações é por qual motivo, mesmo assim, a câmera não possui qualquer registro de imagem, nem de áudio no momento em que o cabo disparou contra Alex usando o fuzil.
Parte da cena que leva à morte foi captada pela câmera do parceiro do PM Soares, o cabo Antonio Falcão da Silva.
Imagens que constam nas investigações mostram a dupla e mais um terceiro PM entrando na favela. Eles passam por vielas até dobrar uma esquina quando a câmera de Falcão, que avançava atrás de Soares, capta o barulho de um tiro.
Após o estampido ouve-se alguém gritar: “Vem, vem, vem...!” E o cabo Falcão corre até o local e se depara com Soares ainda próximo à esquina e a vítima caída no chão. Alex morreu na hora com um tiro de fuzil, nas costas.
A PM tentou levá-lo, supostamente para prestar socorro, mas a população impediu.
"Busquei algumas informações e eles falavam que o Alex vinha no beco, levantou as mãos para o alto e virou. Conforme ele virou, ele foi alvejado pelas costas”, diz o pai de Alex, Robson dos Santos.
Com Alex, a PM encontrou um rádio-transmissor, segundo mostra um print da análise feita pela Polícia Civil na câmera do parceiro de Soares.
Em depoimento, os PMs disseram que com ele também havia um pistola falsa e perto dele, um carregador de munição e drogas. A arma falsa, o carregador e a droga, no entanto, não aparecem nas imagens captadas pelo cabo.
Polícia do Rio investiga suspeita de manipulação de câmeras de PMs em caso de morte na Favela Kelson´s
Reprodução/RJ2
Tentativas de manipulação da câmera
As polícias ainda não sabem porque a câmera de Soares não registrou o momento da morte.
Além das suspeitas no relatório técnico da empresa que indicam que alguém tentou apagar as imagens e também desligar o aparelho, a investigação também revela que os PMs não tinham a intenção de usar a câmera adequadamente desde a saída do batalhão de Olaria, por volta das 8h20.
Ainda pela manhã, em diálogo com o cabo Soares, Falcão pergunta:
"Vai levar, não?", referindo-se ao equipamento.
Soares responde: "Tu que sabe! Acha melhor eu levar?"
E Falcão orienta: “Ah, leva essa p*... Deixa no banco igual... igual fez da outra vez".
De acordo com relatório da empresa que fornece as câmeras, o PM levou o aparelho na operação, mas colocou inicialmente em um "ambiente com pouca luz, possivelmente no bolsão lateral da porta da viatura.
Depois, mudou a câmera para "um ambiente totalmente escuro, sendo perceptível o som fechamento de uma tampa, possivelmente o console central que fica sob apoio de braço da viatura".
Às 11h04 é o último registro de imagem do equipamento. A partir daí, segundo relório técnico, inicia-se uma série de comandos.
Momentos antes da morte - de 15h14 até 15h25 - ocorre uma sequência de apertos de botões.O disparo é ouvido pela câmera do segundo PM às 15h42.
Sete minutos depois: às 15h49, acontece uma tentativa de desligamento.
O GPS da câmera aponta que o PM Soares chegou à Delegacia de Homicídios às 18h07. Logo depois, ocorre mais uma tentativa de desligamento e de manuseio de vídeos no sistema.
O relatório mostra que ela volta para o batalhão às 22h24 da noite do dia 4 de março, dia da morte, mas não é devolvida.
A câmera fica em um posto de policiamento comunitário e, neste local, há novas tentativas de desligar e de visualizar arquivos.
Às 2:45 da madrugada do dia seguinte, o equipamento é desligado por falta de bateria, mas só é devoldido para a unidade no dia seguinte.
Somente após a devolução é que o sistema tem acesso às imagens. Segundo análise do equipamento, feito pela empresa que armazena o conteúdo, durante todo o período, foram utilizados comandos "que estão sob investigação em laboratório na China para garantir que não são serviços mal intecionados e intencionalmente inseridos por algum terceiro".
A empresa afirmou, ainda, que "descarta completamente a possibilidade de uma falha no sistema".
Situação preocupa especialistas
Juristas que trabalham com fiscalização da atividade policial e defesa de Direitos Humanos veêm com preocupação o caso do desaparecimento das imagens.
"É um problema humano. Essas imagens sumiram porque um humano tirou essas imagens do sistema. Então é algo grave. A câmera corporal é boa para os bons policiais que agem dentro da lei. Quem não gosta das câmeras corporais são os policiais que agem fora da lei, que têm medo que seu trabalho seja visto", observa Rodrigo Mondego, advogado e membro da Comissão Popular de Direitos Humanos.
Um levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado entre abril e dezembro do ano passado foram feitos 215 pedidos de acesso às imagens das câmeras corporais de PMs. Destes só um quarto das imagens pedidas foi fornecido.
"E mesmo assim, dentro dessas respostas, existem alguns problemas: que não abordavam o momento da ação policial propriamente... E esse é um problema tem que repercutido na Justiça de uma maneira geral. Então juízes tem solicitado essas imagens e elas não chegam, o próprio Ministério Público [tem pedido]", diz o coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Público André Castro.
"Esses fatos, eles são muito graves. O contrato estabelece que a câmera, ela é acionada automaticamente no momento em que o policial a retira no batalhão, e ela só será desligada quando ele devolve. Então não tem um botão de liga e desliga. Tampouco a câmera tem uma funcionalidade que permita apagar os seus arquivos. O contrato exige que isso não possa acontecer", acrescenta.
Casos de suspeita de suspeita de manipulação criminosa da câmera já estão sendo denunciados pelo Ministério Pública.
"Nós temos a informação de que a Polícia Militar já instaurou mais de dois mil procedimentos disciplinares para analisar os casos de obstrução das imagens. No caso seria o crime de negativa de obediencia. E, ate agora, a gente já pode denunciar, pelo menos, cinco processos envolvendo situações em que se indicia que há uma pratica criminosa e, por conta disso, o policial ou retira a camera ou obstrui a imagem ou de alguma forma ele consegue fazer com que ela nao registre a ocorrência", explica o promotor Paulo Roberto Melo, do MPRJ.
Robson, o pai de Alex, também questiona a condução do caso pelas autoridades: "O Estado, ele não se preocupou nem em ir ao local onde foi o acontecido, né? Para saber como aconteceu. O tanto de morador que tinha, era um beco, a distância. Não foi feito nada. Como é falar para um filho pequeno que o irmão mais velho foi alvejado pelas costas?".
O que diz a polícia
A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar diz que, de acordo com a Corregedoria da Corporação, o Inquérito Policial Militar (IPM) sobre o referido caso segue em curso, onde o policial Douglas de Oliveira Soares responde a um processo por crime militar e transgressão disciplinar e, no mesmo processo, o policial Victor Hugo Pereira Galante responde por transgressão disciplinar.
A SEPM ressalta que a Corregedoria da corporação realiza ações diárias de fiscalização para verificar a utilização das câmeras corporais por parte da tropa. No período de janeiro a abril de 2024, as ações da CGPM resultaram em 44 procedimentos apuratórios administrativos e 09 inquéritos policiais militares instaurados.
O comando da corporação afirma ainda que segue ao dispor para colaborar com as solicitações de todos os órgãos do poder público, elencados em Decreto, que formalizem solicitações em relação as imagens geradas pelas câmeras de uso individual. Atualmente, 12.719 câmeras individuais, das 13 mil destinadas à Polícia Militar, estão em utilização.
A Delegacia de Homicídios investiga o caso.
A L8 Group informa que à época da ocorrência a Câmera Operacional Portátil foi recolhida para laboratório e disponibilizada para avaliação do fabricante. Os resultados dessa avaliação foram integralmente repassados à PMERJ. A L8 possui atuação exclusivamente técnica e não tem autorização para divulgar informações atinentes a investigações.